segunda-feira, 2 de março de 2009

Crónica da Rua


O Entrudo e o Carnaval

Estamos, ainda, no rescaldo do Carnaval. Durante três ou quatro dias, as principais cidades do sul e do litoral do país chamaram a si o principal protagonismo dos festejos. Todas querem erguer a bandeira da tradição e da identidade do país, nem que seja na festa da farinha e dos ovos. Falamos de Sines, Torres Vedras, Loulé, Ovar e tantas outras. Mas tentemos perceber qual o significado deste acontecimento nas sociedades capitalistas pós-industriais. Olhemos, então, como exemplo os festejos de Loulé, no Algarve.

O Carnaval de Loulé costuma ser separado entre o Carnaval dito “civilizado” e o outro, anterior no tempo, que não o seria. São pouco conhecidos os epítetos sob os quais seriam designadas as práticas dos carnavais anteriores a 1906 – data em que a comissão de festejos decide fazer do Carnaval um recurso financeiro para a Misericórdia local. Nalguns livros de história local podemos encontrar muitas respostas. Expressões como “a brutalidade do velho carnaval”, “a machadada de morte no velho «Momo»”; “se jogava agressiva e grosseiramente ao indecoroso Entrudo”, são exemplos da transformação do Entrudo no chamado Carnaval civilizado. Este mecanismo de transformação assumiu, desde sempre, a ideologia da normalidade, da hierarquia, da disciplina, da contenção, como princípios da monarquia e, mais tarde, do Estado Novo. A própria expressão de Carnaval é de origem erudita e foi importada dos festejos urbanos de países centrais da Europa. Diremos, assim, que a civilidade matou o Entrudo, enquanto expressão da manifestação cíclica do mundo agrário, denotativo do ciclo da germinação – das sementeiras e das correspondentes coesões sociais, indispensáveis à sobrevivência agrícola e comunitária.

Na verdade, os festejos do Entrudo – ou Entroido, como se chamava na raia nortenha, mas também Entrudo no Algarve – o Entrudo, dizia, são práticas de introdução a uma nova fase da vida agrária. Antes desta nova fase, os elementos de contenção e jejum, não só do ponto de vista da religiosidade cristã, são fundamentais à progressão da floração dos campos e da vida. É o fim do Inverno e, nesta altura, o povo extravasa os limites do seu normativo, como a semente rasga o seu invólucro em busca do florescimento. Por isso, tudo é permitido na libertação dos papéis sociais. A sexualidade, a profissão, as hierarquias sociais, o controlo social, a morte, são representações habituais nestes rituais comemorativos. A primordial função social do Entrudo ou Carnaval é a de catalisar os rancores e os desejos reprimidos, trazendo-os à superfície durante estes dias. Trata-se de uma válvula de segurança para o sistema que o grupo impôs a si próprio e, por isso, estas cerimónias são a garantia da sobrevivência do grupo.

As simulações efectuadas nas práticas tradicionais do Entrudo, que temos registado em recolhas por todo o Algarve, mostram esse psicodrama: os jovens vestem-se com as roupas do género contrário, contrariando assim a sexualidade explícita; grupos de rapazes e raparigas atacam-se entre si, com papelinhos e farinha – símbolo de fartura de sementeira de pão que germina na terra – procurando estabelecer rituais de namoro e contratualização para futuros casamentos; jovens mascaram-se de fantasmas, de velhos e de caveiras, abjurando a morte, desejando que a ela se substitua uma nova vida, como a que está atrás da máscara; cègadas, com homens vestidos de fardas de autoridade criticam, a torto e a direito, as mazelas da terra, pequenas delinquências e anomias, divulgando muitas vezes o que é óbvio, mas dirimindo, assim, na praça pública, as discriminações e as injustiças.

Ora, é esta prática social, esta função excomungatória, necessária ao renascimento social e cultural, que o Carnaval civilizado põe fim. No Carnaval o povo não participa, assiste; não se integra, desfila; não se amotina, ou se enraivece, submete-se; não é actor, mas público. O rei Momo, que se destruía como um rei antigo, para dar lugar ao novo, é agora o rei da festa que, de cima do seu trono, impõe as suas regras: o horário da brincadeira, o território fechado da peleja, a separação das classes.

Hoje, este Carnaval não é uma prática popular de tradição rural, mas um cartaz turístico do efémero, como aliás foi pensado nos anos 60 do século passado. O Carnaval é o resultado, ainda, das tentativas de hegemonização e controlo da cultura popular rural.

E, assim, o Carnaval civilizado vai conseguindo aquilo que a igreja, desde a Idade Média, nunca conseguiu: opor-se aos “costumes dos gentios” e fazer de uma festividade cíclica agrária, de esconjuramento popular, uma manifestação religiosa de abertura da Quaresma.

É claro que estas mudanças não são pacíficas. E talvez seja por isso que, opondo-se a uma crescente aculturação estrangeira do Carnaval – processo consequente da turistificação carnavalesca – muitos optem por chamar a si a detenção da expressão de uma maior portugalidade.

[Helder Raimundo, crónica do Socializar por aí, de 26 Fevereiro 09]

1 comentário:

Lotas disse...

Boa noite...
só queria acrescentar uma coisa.. O Carnaval começou por ser uma festa para Homossexuais... esta era a unica altura onde pessoas com orientações sexuais diferentes do que aquelas que a sociedade esta habituada se assumiam! Esta começou por ser uma maneira das pessoas mostrarem aquilo que sentiam (por exemplo no Brasil).... era como que uma libertação! Hoje muitos homens se vestem de mulher e se calhar nem sabem porque... também se soubessem... :) Só um acrescento :)